Quando pensamos em trauma, normalmente desfilamos em nossas imagens mentais situações de ameaça à vida ou à integridade física e emocional. Peter Levine, criador da Somatic Experiencing® (SE), uma intervenção somática para a cura e prevenção do estresse traumático, revolucionou o conceito de trauma, postulando que ele é decorrente de qualquer experiência acontecida rápida demais, intensa demais ou precoce demais, sobrepujando, assim, a capacidade do indivíduo para o enfrentamento ativo da situação.
O que acontece nestas situações é uma sobrecarga no sistema nervoso, que colapsa em sua possibilidade de lutar ou fugir, e entra instintivamente numa terceira resposta de sobrevivência, passiva, que é a imobilidade tôniaca ou dissociação.
A revolução desta definição está em focar não no evento traumático em si - que pode ser grandioso, e gerar trauma em uns e não em outros, ou pode ser aparentemente insignificante, mas deixar marcas disfuncionais por toda uma vida; ela foca na resiliência ou não do organismo, termo importado da física que significa a capacidade de um corpo suportar pressão sem se desorganizar.
A constituição da resiliência é um processo complexo, que passa por nossas histórias prévias de sucesso e insucesso, auto-confiança e insegurança, genética e compleição física, mas também pelo resultado de uma evolução de 180 milhões de anos, enquanto bichos que somos, no topo da cadeia evolutiva, e que responde às ameaças ainda como se estivéssemos correndo de um tigre-dente-de-sabre.
Sob ameaça, nosso sistema de defesa autonômico, instintivo, é acionado, e passamos a agir com as tripas: entra em ação o cérebro mais primitivo, reptiliano, cuja linguagem é a sensação, e trata de mobilizar todos os sistemas do corpo (endócrino, motor, circulatório, visceral...), na intenção de aumentar nossa competência pra sobreviver.
Depois que o perigo passa, convocamos o homo sapiens de volta, pra dar um significado a tudo o que aconteceu, através do cérebro mamífero superior, o neo-córtex.
Entretanto, o neo-córtex é apenas um instrumento que modela a matéria bruta da experiência vivida, não é em si a matéria prima do trauma, tendo portanto, às vezes, pouca eficácia em regularizar de novo nosso funcionamento bio- psíquico-social.
O trauma, inscrito no sistema nervoso através da memória intrínseca, procedural, somática, não aceita ser devassado pela cognição, e necessitamos de recursos terapêuticos que permitam acessar o inconsciente somático e integrá-lo à correnteza original da vida e das funções conscientes do ego.
A compreensão de trauma, em termos de neurofisiologia, está em absoluta consonância com a definição psicodinâmica junguiana de complexo: estamos lidando com pedaços da experiência que, por serem insuportáveis ou incompatíveis com a organização egóica, se tornam dissociados desta, e passam a funcionar com autonomia e gerência próprias, como se fosse um alter-ego, claramente de natureza sombria.
Como no centro de todo complexo há um arquétipo, com uma particular tonalidade afetiva, as experiências traumáticas vão se organizando por similaridade de teor arquetípico, de maneira que diferentes eventos passam a orbitar, como satélites, em torno de um mesmo núcleo.
Em função disso, em nossas incursões pelo universo somático do trauma, muitas vezes lidamos com mais de uma experiência de sobrecarga, que não se organizam no nosso sistema de forma linear ou cronológica, uma vez que o inconsciente não é linear, nem lógico ou cronológico, mas imagético, simbólico, metafórico.
Essa compreensão pode ajudar não só a renegociar experiências pontuais, mas também a potencializar os traços das estruturas de caráter dos nossos clientes - formadas, por sua vez, por experiências traumáticas durante o desenvolvimento da personalidade.
Re-associar as experiências dissociadas, aumentar o continente egóico e integrar elementos sombrios são os componentes da nossa jornada heróica em direção ao grande mistério que somos nós.
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LIANA NETTO
Liana Netto é psicóloga clínica, professora e supervisora do Instituto Junguiano da Bahia e dos cursos de Experiência Somática, coordenadora do curso de Pós-graduação em Psicotraumatologia Junguiana e doutora em medicina (Universidade Federal da Bahia).
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